No dia 22 de maio de 2019, tive o prazer de participar como convidado de uma ação de reinserção psicossocial da Andorinhas. Uma viagem ao Rio de Janeiro, passando pela praia, museus, galerias, tudo voltado à arte e ao trabalho de saúde mental no Brasil, temas previamente trabalhados com os participantes. Associados, familiares, profissionais e usuários dos serviços juntos, em um ônibus confortável para um dia tão longo.
Quando contamos essa experiência muitas pessoas manifestam uma dúvida, mais ou menos explícita, pra quê fazer isso? Que função essa ação promoveria?
Aqueles que passaram pela experiência de ter os laços sociais precarizados, de ficar num estado de vulnerabilidade, vivenciam muita dificuldade de manter os investimentos pessoais. Independe de ter crítica do que deveriam fazer, isso não torna mais fácil. Ocorre uma perda das coisas da vida, uma anestesia no conviver, no desejar, das realizações. Essa devastação deixa de lado a vida emotiva e sem garantia de antes.
Temos estabelecimentos de saúde para cuidar dos corpos, até das crises psiquiátricas, mas isso nem sempre é suficiente. Quando a situação é vulnerável, o paciente vai ter alta se mantendo na mesma situação. Assim, são necessárias estratégias para superar o ciclo de vulnerabilidades, para retomar a cidadania ativa e comunitária, evitando a cronicidade.
Após um cuidado em saúde imediato, o que se segue é um momento de hiato. Falta algo que anterior a devastação, era preenchido pelas relações que havia com a família, relacionamentos, amizades, trabalho, comunidade, etc. E a vida anterior nem sempre terá retorno, marcas foram deixadas e o tempo passa.
Esse é um momento de intenso sofrimento e receio, o vazio provoca angústia. Construir uma nova vida exige demais trabalho e vontade. Exige tanto que aqueles que vivenciam as grandes perdas, tal qual for o motivo, se questionam se terão forças para essa tarefa. Questionam se não seria melhor um preenchimento precário, ao invés de correr o risco de perder novamente. É um momento delicado e de nervosismo constante, parece que logo vai haver outra perda, outra pancada, outra expulsão.
O possível é dar apoio e convocar a tentar. Esse processo passa por idas e vindas, na verdade testes de segurança, como quem vai tateando às cegas, e esse é um trabalho que também machuca. Por isso não podemos desrespeitar o tempo de cada um. Quando se investe nas tentativas, a vida não muda de imediato, não acompanha suas mudanças. Ora se apressa além do que está pronto, e esse arranjo não lhe cabe. Ora o resultado do esforço parece não vir.
A oferta de reinserção psicossocial é de preenchimento, de possibilidade de reconstrução de vida novamente. De suporte para enfrentar os fantasmas que sempre retornarão. Assim o que aplaca o sofrimento é ter segurança para caminhar. Se em cada passo certos fantasmas ficam mais distantes, na verdade nunca somem, se somam. Caminhar é para possibilitar na verdade, tentar viver com outros fantasmas.
A viagem como reinserção psicossocial fornece ao receio uma licença, para caminhar novamente. Com essa licença, se caminha olhando apenas o mais pra frente que for possível para cada um, pois também isso não deve ser uma obrigação.
Aprendemos desde cedo que os espaços são carregados de significados, onde somos e onde queremos ser bem vindos. No dia 22 fomos à praia, molhar os pés no mar. Conhecemos a obra de quem fez arte de fama internacional. Ora, o mundo parece não ter limites, pois o Bispo do Rosário foi capaz de tal proeza. Vimos que há outros lugares que não são de saúde, e que têm experiências maravilhosas. Muitas horas no ônibus trazem desconforto, como em toda viagem.
Todos foram solicitados, bem recebidos para circular, responder e observar novamente que as possibilidades existem. Uma ação de reinserção psicossocial é uma chance para tudo. Um dia em que para tudo. As vivências são para um puxão, a surpresa desarma, ultrapassa ao menos por um momento. Esse toque é para a possibilidade de retoque.
O efeito em cada um se manifesta de maneira diferente. Mais curiosidade, mais desejo, mais falas, mais olhar, mais reconhecimento e mais vida. Também mais medo, que não é um problema, se entendido que de certos fantasmas não há fuga, e que não há garantia. Só não houve indiferença, as grandes marcas permitem isso. Trabalhar nesse momento, nessa marca foi uma oportunidade.
A viagem não é uma ação de saúde, ao menos no modelo comum de saúde. Pois sem vida a saúde não é pauta. Saúde pra quê?
É renovador trabalhar com pessoas que não pensam, que do jeito que for está bom, que se não fosse isso não teria nada mesmo. Sabemos que é possível fazer.
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Texto: Lucas Mollica Antonucci
Foto: Aline Gabriel